Quando pensamos no cumprimento das Escrituras, nos vêm à mente um Deus Todo-Poderoso, Excelso, Supremo, extremamente meticuloso em cada detalhe para que a sua vontade soberana prevaleça.
Isso nos leva a pensar em alguns dos temas mais polêmicos do cristianismo: o livre-arbítrio, a liberdade humana, a soberania e a providência de Deus.
Minha pretensão é juntamente com você explorar esses temas com a ajuda de mestres como R. C. Sproul; Louis Berkhof, Grudem, Wayne e outros, para aprendermos um pouquinho mais.
Agora, vamos olhar essa verdade no contexto desta passagem bíblica. Ela nos fala sobre a substituição de Judas por Matias.
Os discípulos sabiam que Jesus tinha escolhido doze por causa do número das tribos de Israel. Então, em seu discurso, Pedro lhes fala sobre a necessidade de escolher mais alguém para que restabelecessem o formato original do ministério. As condições para ser um apóstolo já foram discutidas em outros textos deste site…
David J. Williams nos chama atenção para um detalhe interessante: “Pedro presidiu essa reunião, com a presença de aproximadamente cento e vinte irmãos. Segundo o costume judaico, cento e vinte homens era o número mínimo requerido para constituir-se uma comunidade dotada de poderes para nomear um painel completo de vinte e três juízes que integrariam o tribunal local. A comunidade que tivesse menos de cento e vinte homens só poderia nomear uma corte de três juízes.”
A respeito do apóstolo Matias, John Fox fala sobre ele no célebre Livro dos Mártires: “dele se sabe menos que da maioria dos discípulos; foi escolhido para encher a vaga deixada por Judas. Foi apedrejado em Jerusalém e depois decapitado.”
Vários teólogos questionam se lançar sortes foi a melhor maneira para a escolha de Matias (substituto de Judas). Lendo o livro de Provérbios, não dá para condená-los: “A sorte se lança no regaço, mas do Senhor procede toda decisão.” (Pv 16.33).
Examinando essa passagem com um pouco mais de profundidade teológica, encontramos alguns assuntos importantes. Vamos a eles!
O livre-arbítrio é definido como a “capacidade de fazer escolhas de acordo com nossos desejos”. Aurélio Agostinho, bispo de Hipona, mais conhecido como Santo Agostinho foi um dos primeiros teólogos a estudar sobre este tema. Inicialmente, ele abordou o problema dizendo que o homem tem um livre-arbítrio, mas lhe falta liberdade para usufruí-lo.
Segundo ele, “antes da queda foram concedidas a Adão duas possibilidades: Ele tinha a capacidade para pecar e a incapacidade para não pecar. Depois da queda, o homem era moralmente incapaz de viver sem pecar. …Quando nascemos de novo, nossa servidão ao pecado é aliviada. Depois que somos vivificados em Cristo, novamente temos a capacidade para pecar e a capacidade para não pecar. No céu, teremos a incapacidade para pecar.” (Eleitos de Deus – R. C. Sproul, pg. 48).
Continuando com Sproul, ele nos explica o que significa tudo isso: “Colocando de outra maneira, antes da queda o homem era capaz de refrear-se de pecar; depois da queda, não é mais capaz de refrear-se de pecar. É isso que chamamos de pecado original. Esta incapacidade moral ou servidão moral é vencida através do renascimento espiritual. O renascimento libera-nos do pecado original. Antes do renascimento ainda temos um livre-arbítrio, mas não temos esta liberação do poder do pecado, que é o que Agostinho chamou de “liberdade”.”
Aliada a ideia de que o homem não possui livre-arbítrio ou, se possui, é incapaz de exercê-lo corretamente, a doutrina reformada nos ensina sobre a soberania de Deus. Observe o que diz o Capítulo 111 da Confissão de Fé de Westminster: “Desde toda a eternidade, Deus, pelo muito sábio e santo conselho da sua própria vontade, ordenou, livre e inalterável, tudo quanto acontece, porém de modo que nem Deus é o autor do pecado, nem violentada é a vontade da criatura, nem é tirada a liberdade ou contingência das causas secundárias, antes estabelecidas.”.
“Assim, quando perguntamos se temos “livre-arbítrio”, é importante esclarecer o que a palavra significa. As Escrituras em lugar nenhum dizem que somos “livres” no sentido de estar além do controle de Deus ou de sermos capazes de tomar decisões não provocadas por algo. – No entanto somos livres no mais sublime sentido em que qualquer criatura de Deus poderia ser livre – fazemos escolhas voluntárias, escolhas que provocam resultados reais. – Por outro lado, liberdade alheia à atividade sustentadora e controladora de Deus, é impossível se Jesus Cristo de fato está “continuamente carregando consigo as coisas pela sua palavra de poder”.” (Wayne Gruden, pg. 261).
Sobre a providência Divina, “Agostinho tomou a dianteira no desenvolvimento dessa doutrina. Contra as doutrinas do destino e do acaso, ele dava ênfase ao fato de que todas as coisas são preservadas e governadas pela soberana, sábia e bondosa vontade de Deus, mas afirmava o domínio de Deus igualmente sobre o bem e sobre o mal que há no mundo.” (Berkhof – pg 158).
Resumidamente, a providência divina fala da contínua relação de Deus com a sua criação. Ela combate o deísmo (ensina que Deus criou o mundo e depois o abandonou); o panteísmo (nega a realidade da criação, dizendo que ela é parte de Deus); a casualidade e o determinismo.
Todos os acontecimentos aparentemente aleatórios ou casuais, aqueles que conhecemos sua causa natural, questões nacionais, enfim, todos os aspectos de nossa vida, inclusive o mal, estão sob o controle absoluto do Eterno. O sucesso e o fracasso, nossos dons e talentos, todos provêm do Senhor. Nossos defeitos e fraquezas vêm da natureza corrompida pelo pecado original.
Depois desse minúsculo resumo doutrinário, vamos refletir um pouco mais sobre o nosso texto bíblico em apreço.
O evangelista João apresenta Judas como uma pessoa avarenta, desonesta e ambiciosa. (Jo 12.6). Apesar disso, ele conseguia mascarar seus defeitos. Notem que os discípulos não desconfiarem dele quando Cristo falou que seria traído. Isso nos mostra o quanto alguém pode ser falso cristão, hipócrita e enganador. (Jo 13.26).
Admirar a beleza da árvore é um erro comum na igreja local. Devemos examinar os frutos para não sermos iludidos nem pela maldade humana, nem pelas artimanhas do diabo que se traveste de anjo de luz.
Todo ser humano tem suas tendências pecaminosas. A Bíblia é clara ao nos dizer para vivermos sob a orientação do Espírito Santo a fim de não cedermos aos desejos da carne. Como disse John Piper, se não guerrearmos contra nós mesmos, seremos levados pelo pecado.
Assim, quando o pecado torna-se o “senhor” de uma pessoa, esta começa a transformar-se na “imagem e semelhança” desse pecado. Daí em diante ela passa a obedecê-lo. Não consegue fazer mais nada sem esse pecado. Porque o pecado passou a ser um deus para essa pessoa, ela passa a adorá-lo e considerá-lo como o salvador dela. Na verdade, sempre que pecamos estamos adorando um “falso deus”.
Quantas vidas se perderam porque lhes faltou o freio do temor a Deus. Pessoas que personificaram o mal. Tornaram-se seres brutalizados; mentirosos; sem uma gota sequer de amor, quase desumanos.
O apóstolo Paulo em Rm 1.21-32 nos revela o que acontece(u) com quem se deixa(ou) levar pelo pecado. Vejamos:
“Recusando-se a admitir ou agradecer a Deus, tornaram-se insensatos e afundaram ainda mais suas estúpidas mentes na escuridão. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si…”.
“E, por haverem desprezado o conhecimento de Deus, o próprio Deus os entregou a uma disposição mental reprovável, para praticarem coisas inconvenientes, cheios de toda injustiça, malícia, avareza e maldade; possuídos de inveja, homicídio, contenda, dolo e malignidade; sendo difamadores, estando cheios de toda iniquidade, prostituição, malícia, avareza, maldade; cheios de inveja, homicídio, contenda, engano, malignidade; Estão cheios de todo tipo de perversidade, maldade, ganância, vícios, ciúmes, crimes de morte, brigas, mentiras e malícia.”
“Caluniadores, aborrecidos de Deus, insolentes, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes aos pais, sendo murmuradores, detratores, aborrecedores de Deus, injuriadores, soberbos, presunçosos, inventores de males, desobedientes ao pai e à mãe; e falam mal uns dos outros. Têm ódio de Deus e são atrevidos, orgulhosos e vaidosos. Inventam maneiras de fazer o mal, desobedecem aos pais, insensatos, pérfidos, sem afeição natural e sem misericórdia.”
Os Evangelhos nos contam que satanás possuiu Judas. Possivelmente, para que ele concluísse o que estava em sua mente reprovável. Tornou-se a personificação do mal; o exemplo maior de quem se rende totalmente à perversidade de seu coração.
Assim também acontece com quem dá vazão à sua pecaminosidade. O ódio domina o coração de tal forma que a pessoa torna-se assassino, terrorista, etc. A luxúria faz com que ela transforme-se em adúltero, pedófilo, devasso, etc. A mentira faz com que a pessoa se corrompa a ponto de vender a própria alma. Isso é o que qualquer pecado faz conosco.
O pecado é um “deusinho” inescrupuloso que contaminou o DNA de todos os seres humanos, à exceção de Jesus Cristo. Seu poder de destruição é altíssimo e o seu salário é a morte (Rm 6.23a). Essa é a recompensa por se entregar a um “falso deus”.
Um observador desatento, que mantém seus olhos apenas no aqui e agora, pensará como o rico da parábola: “alma: come, bebe e alegre-se”. (Lc 12.19). O homem sem Cristo é moralmente incapaz de viver sem pecar. Para ele, a sua alegria está na falsa liberdade que o pecado oferece.
A Bíblia nos alerta em Gl 6.7-8: “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia para a sua própria carne da carne colherá corrupção; mas o que semeia para o Espírito do Espírito colherá vida eterna.”.
Nossa única saída é seguir os conselhos de Paulo aos efésios:
“Revesti-vos de toda a armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes. Estai, pois, firmes, cingindo-vos com a verdade e vestindo-vos da couraça da justiça. Calçai os pés com a preparação do evangelho da paz; tomando, sobretudo o escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno. E levem sempre a fé como escudo, para poderem se proteger de todos os dardos de fogo do maligno. Tomai também o capacete da salvação e a espada do Espírito, que é a palavra de Deus; com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos.” Ef 6.11-18.
Deus não predestinou os salvos para o pecado e sim para serem conforme a imagem de seu Filho. Seu desejo é que vivamos como filhos da luz e não das trevas.
J. B. Philips parafraseou muito bem Rm 12.1-2: “Com os olhos bem abertos para as misericórdias de Deus, meus irmãos, lhes imploro que, num ato de adoração inteligente, entreguem-lhe seus corpos como sacrifício vivo, dedicado a ele e por ele aceitável. Não permitam que o mundo ao redor os force a se encaixarem em seus moldes, mas deixem que Deus os recrie de maneira que o estado mental de vocês seja completamente transformado. Assim vocês demonstrarão na prática que a vontade de Deus é boa, aceitável a ele e perfeita.”.
A Palavra de Deus é maravilhosa. Ela nos mostra os três pontos decisivos da história humana: criação, queda e por fim a redenção. Não encerra o ser humano num fim trágico. A continuação de Rm 6.23 do versículo oferece a solução para o pecado e a morte: “mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor”.
Cristo nos oferece vida de forma abundante, superior. Ele é simplesmente tudo em todos! Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz!
Concluo com a lembrança de que existe uma promessa para aqueles que se recusarem a viver de acordo com este mundo caído:
“… retirai-vos do meio deles, separai-vos, diz o Senhor; não toqueis em coisas impuras; e eu vos receberei, Pelo que saí do meio deles, e apartai-vos, diz o Senhor; e não toqueis nada imundo, e eu vos receberei; e eu serei para vós Pai, e vós sereis para mim filhos e filhas, diz o Senhor Todo-poderoso.” II Cor 6.17-18.
Até a próxima!
Deus o abençoe!
Notas
1. SPROUL, R.C. Eleitos de Deus. Editora Cultura Cristã, 2002.
2. WILLIAMS, David J. Novo Comentário Bíblico Contemporâneo – Atos. São Paulo: Editora Vida, 1996.
3. BERKHOF, Louis. Teologia Sistemática. Editora Cultura Cristã, 3a. Edição, 1995.
4. Grudem, Wayne A. Teologia Sistemática Atual e Exaustiva. São Paulo: Editora Vida
Nova, 1999.
5. PHILIPS, J. B. Cartas para Hoje. São Paulo: Ed. Vida Nova, 1994.
6. FOX, John. O Livro dos Mártires. Editora Mundo Cristão, 2003.
Membro do Ministérios Justificação pela Fé, amigo fiel e apaixonado pela Teologia Reformada. Membro, líder de pequeno grupo e professor da EBD da Igreja Presbiteriana do Calvário de Sorocaba/SP.