A polarização gera ódio?

Com isso, o povo da cidade ficou dividido: alguns tomaram partido dos judeus, e outros, dos apóstolos”. Atos 14:4

Retornando às nossas reflexões sobre o livro de Atos dos Apóstolos, hoje vamos pensar um pouco sobre o capítulo 14.1-19. “Sempre se necessita coragem para ser cristão, porque se deve tomar um caminho que é distinto ao da multidão.” Assim afirmou William Barclay, comentando o texto em questão.  

Em sua primeira viagem missionária, o apóstolo Paulo viu diversas facetas do ser humano. Percebeu  que as massas não são confiáveis por serem extremamente vulneráveis.

O apóstolo Paulo afastou-se das principais cidades metropolitanas. O que isso significa? Paulo e seus companheiros ficaram mais vulneráveis à violência que reinava no império romano. Eles estavam em Icônio, pequena cidade da Turquia, chamada Konya. 

Eles proclamaram fortemente Jesus Cristo, “falaram ousadamente acerca do Senhor. O Espírito Santo confirmava a mensagem deles concedendo-lhes poder para realizar sinais e maravilhas. At 14:3.

Muitos judeus e gentios creram no Evangelho. Esse fato dividiu a cidade. Tanto judeus como líderes dos gentios se mostraram indignados com os novos convertidos. Ao perceberem o perigo que corriam, Paulo e seus companheiros fugiram para as cidades circunvizinhas para continuarem anunciando o Evangelho. Paulo realizou um milagre muito parecido com o que fez o apóstolo Pedro no capítulo 3 de Atos.  William Barclay nos explica essa passagem de At 14.8-18, conforme a seguir:

“Paulo e Barnabé se dirigiram de Icônio a Listra e ali se viram envoltos em um estranho incidente.  A explicação de que foram confundidos com deuses reside na legendária história de Licaônia.  Na região da Listra se contava que uma vez Zeus e Hermes tinham baixado à Terra incógnitos e disfarçados. Ninguém em todo o território quis lhes brindar hospitalidade. Finalmente dois velhos camponeses, Filemom e sua esposa Baucis, acolheram-nos e foram gentis com eles. O resultado foi que os deuses destruíram toda a população com exceção do matrimônio ao que fizeram guardião de um templo esplêndido. Ao morrer, marido e mulher se converteram em duas grandes árvores.  De modo que quando Paulo curou o aleijado o povo de Listra decidiu não cometer o mesmo engano e voltar a ignorar aos deuses, Barnabé deve ter sido um homem de aparência nobre, já que o tomaram por Zeus, o rei dos deuses. Hermes era o deus da dissertação e mensageiro dos deuses e, como Paulo era aquele que falava, chamaram-no Hermes.” 

Que situação hein…  Se fossem aproveitadores, esse seria o momento exato para extorquir a cidade.  Ao invés disso, Paulo e seus amigos rasgam suas vestes e se mostram seres humanos imperfeitos; “pecadores salvos pela graça de Deus”. Não foi fácil convencê-los de que somente o Deus criador do universo tem poder para fazer milagres tão espetaculares e permanentes.  O evangelista descreve o modo trágico como os judeus reagiram ao trabalho missionário de Paulo: “Então alguns judeus chegaram de Antioquia e Icônio e instigaram a multidão. Apedrejaram Paulo e o arrastaram para fora da cidade, pensando que ele estivesse morto.” At 14:19. Essa passagem bíblica merece uma olhadinha mais cuidadosa. Vamos contextualizar tudo isso. Há um bom tempo, a polarização vem tomando conta do Brasil. Hoje em dia, é muito difícil ter uma conversa pacífica com familiares, vizinhos e amigos. Todo cuidado é pouco.

Kirk J. Schneider, psicólogo e psicoterapeuta,  que assumiu um papel de liderança no avanço da terapia existencial-humanística e da terapia existencial-integrativa nos Estados Unidos, afirmou em um de seus artigos, adaptado de um post anterior da sua coluna no Psychology Todaye publicado no Journal of Humanistic Psychology “A mente polarizada é a fixação em um ponto de vista e a exclusão total de pontos de vista concorrentes e, na minha opinião, essa é a ‘praga’ psicossocial da humanidade.” De onde vem a polarização? A cosmovisão cristã nos apresenta a história da humanidade em três períodos distintos: criação, queda e redenção. Essas três fases seguem o ser humano em todos os aspectos de sua vida; pessoal ou social. 

Talvez por isso a polarização tenha início na educação familiar, na escola, na igreja, enfim na comunidade onde a criança e o adolescente convivem. Os adultos responsáveis dificilmente percebem que estão ensinando o radicalismo para suas crianças, quando naturalmente não aceitam críticas ao seu modo de educar, ou rejeitam radicalmente o estilo de vida de outras famílias, apenas por serem diferentes.   Infelizmente, até mesmo em muitas igrejas, temos esse problema com o ensino, os costumes e a teologia. A queda acontece quando o indivíduo, no processo de autoafirmação, resolve romper com boa parte do que aprendeu com a família e a comunidade. A partir daí o homem parte em busca da sua redenção.

Ao encontrar um grupo que pensa exatamente igual a ele, esse indivíduo acredita que alcançou o paraíso, a sua redenção. Afinal, ele passa a ser aceito por todos e sempre tem razão. Sua voz é ouvida por todos do grupo. É a salvação que ele tanto buscava. Nossa necessidade de afeto, aconchego e colo é supostamente atendida. Atualmente, essa sensação é encontrada, principalmente nas redes sociais e seus grupos. 

O problema é que esse processo resulta na criação de bolhas. Cada indivíduo acaba tendo contato apenas com opiniões, notícias, artigos, vídeos e imagens que reforçam suas crenças. Pontos de vista diferentes, por outro lado, têm chance mínima de furar essa bolha e nos atingir. O resultado: cada pessoa consolida e reforça as ideias que já tem e passa a ter mais certeza de que está certa em seus julgamentos. As visões discordantes se tornam cada vez mais estranhas, absurdas e, no ponto máximo, inaceitáveis. A polarização também vem da arrogância e prepotência dos nossos corações. Queremos ter razão. Exigimos concordância. Nossa sede pela autonomia e independência de Deus é satisfeita. Na verdade, nos sentimos como o Todo-Poderoso, querendo mudar a cabeça das pessoas. 

Sendo assim, nos organizamos em grupos pró e contra. Nesse sentido, para nos sentirmos redimidos, não apenas discordamos, mas queremos destruir o outro. Isso gera ódio. Nossas relações com quem não concordamos tornam-se tóxicas. O canibalismo verbal e emocional torna-se prática normal. Passamos por cima de tudo e de todos a fim de que as nossas ideias prevaleçam.  A revista Veja publicou em 26 de setembro de 2019, um artigo intitulado “Como a polarização política afeta o corpo e a mente.”  Vejamos um trecho do artigo:  “… Um novo estudo, organizado pela Universidade de Nebraska-Lincoln (EUA) e publicado ontem (25), buscou dimensionar o impacto da polarização política no psicológico dos norte-americanos… 

Cerca de 40% dos 800 entrevistados afirmou que a atual situação política os estressa, enquanto 20% relatou sofrer de insônia por causa do assunto. Além disso, um quinto dos participantes do estudo contou que perdeu amizades por causa de discussões políticas.  Um dos achados mais preocupantes, segundo os pesquisadores, foi o seguinte: 4% dos indivíduos que responderam ao estudo contaram já ter tido pensamentos suicidas por causa da política. Aplicado à totalidade dos norte-americanos, esse número equivaleria a 10 milhões de pessoas…”  https://veja.abril.com.br/ciencia/como-a-polarizacao-politica-afeta-o-corpo-e-a-mente/

O apóstolo Paulo sofreu na pele o ódio daqueles que discordavam dele, ele foi apedrejado. Hoje em dia, o apedrejamento é feito, principalmente nas redes sociais.  Na sua Carta aos Coríntios, Paulo traz a solução para as conflituosas relações humanas.  Os coríntios estavam divididos. Havia seguidores de Apolo, Pedro, Cristo e Paulo. Então o apóstolo os adverte: “Irmãos, suplico-lhes em nome de nosso Senhor Jesus Cristo que vivam em harmonia uns com os outros e ponham fim às divisões entre vocês. Antes, tenham o mesmo parecer, unidos em pensamento e propósito.” 1 Cor 1:10.  O apóstolo critica severamente as dissensões, os litígios, os conflitos na ceia do Senhor e a aplicação dos dons espirituais. A solução apresentada por ele está no capítulo 13 de Coríntios:  “O amor é paciente e bondoso. O amor não é ciumento, nem presunçoso. Não é orgulhoso, nem grosseiro. Não exige que as coisas sejam à sua maneira. Não é irritável, nem rancoroso. Não se alegra com a injustiça, mas sim com a verdade.” 1 Cor 13:4-6

O apóstolo Tiago concorda com ele quando diz: “…a sabedoria que vem do alto é, antes de tudo, pura. Também é pacífica, sempre amável e disposta a ceder a outros. É cheia de misericórdia e é o fruto de boas obras. Não mostra favoritismo e é sempre sincera. E aqueles que são pacificadores plantarão sementes de paz e ajuntarão uma colheita de justiça.” Tg 3:17,18. Tiago afirma que os que se esforçam para pacificar os relacionamentos colherão a justiça. Pense bem, não é isso que as diversas ideologias prometem? A guerra não traz justiça, traz violência e ódio. 

Jonathan Haidt é filósofo e psicólogo, diz o seguinte:  “procurar entender o outro lado, buscar partir de uma base de valores comuns, para então estabelecer o diálogo. Esse exercício de empatia não só nos ajuda a comunicar (e, quem sabe, convencer) melhor nosso interlocutor — pois aprendemos a nos dirigir ao elefante, e não ao cavaleiro — como também nos abre para sermos nós mesmos transformados, e daí quem sabe enxergar uma gama maior de pessoas.”

O conselho do apóstolo Pedro também nos leva para uma comunicação  pacífica: “E todos vocês vistam-se de humildade no relacionamento uns com os outros. Pois, Deus se opõe aos orgulhosos, mas concede graça aos humildes”. 1 Pe 5:5. Jesus Cristo nos apresenta o único caminho para a redenção: o amor.  “Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento, e de todas as tuas forças; este é o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.” Mc 12:30,31

Somos chamados para vivermos em unidade, como um corpo, onde, se um membro sofre, todos sofrem juntamente com ele. Ajudamos uns aos outros a carregar nossos fardos, resolver nossos dilemas e problemas.  Na cruz de Cristo, a maior demonstração de amor que já existiu, há esperança para nós. Olhemos para Ele. Vamos permitir que esse amor imensurável encha os nossos corações através do Espírito Santo. Se você considera como inimigo alguém que tem a ideologia diferente da sua, por considerar o pensamento dele incoerente, injusto, violento, etc, lembre-se das palavras de Cristo: “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus.” Mt 5:44

Na próxima vez que for pensar em  escrever algo nas redes sociais, faça assim:  “Concentre-se em tudo que é verdadeiro, tudo que é nobre, tudo que é correto, tudo que é puro, tudo que é amável e tudo que é admirável. Pense no que é excelente e digno de louvor.” Fp 4:8

As diferenças não precisam transformar-se em ódio!

Pense nisso!!!

Até a próxima!!!   

Deus o abençoe!!!                                                                        

Elias Silvio

Notas

  1. J. Williams, David. Atos, Novo Comentário Bíblico Contemporâneo. São Paulo: Editora Vida, 1985.
  2. H. Gundry Robert. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1978.
  3. Craig S. Keener. Comentário Bíblico Atos, Novo Testamento. São Paulo: Editora Atos, 2004.
  4. Stott, John R. W. A mensagem de Atos. Até os confins da terra. São Paulo: ABU Editora S /C, 1990.
  5. Kistemaker, Simon J. Comentário do Novo Testamento – Exposição de Atos dos Apóstolos. Editora Cultura Cristã, 2003.
  6. Barclay,  William. O Novo Testamento Comentado.