Judeus e gentios parecem diferir fundamentalmente um do outro no fato de que os judeus ouvem a lei (Romanos 2:13), possuindo-a e ouvindo a sua leitura na sinagoga todo sábado, enquanto os gentios não têm a lei (Romanos 2:14). Esta não lhes foi revelada nem foi dada a eles. No entanto, insiste Paulo, pode ser que haja exagero nessa diferenciação. Afinal, não existe entre eles qualquer distinção fundamental no que diz respeito ao conhecimento moral que possuem (já que as exigências da lei estão gravadas em todos os corações humanos, 15), ou ao pecado que eles cometeram (desobedecendo a lei que conheciam), ou à culpa em que incorreram, ou ao julgamento que receberão.
O versículo 21 coloca os judeus e gentios na mesma categoria de pecado de mote. Paulo faz duas colocações paralelas, ambas começando com as palavras todo aquele que pecar. O verbo, no entanto, está no tempo aoristo e sua tradução deveria ser “todos os que pecaram” (hemarton), como se lê na tradução de Almeida. Paulo está resumindo a vida de peado deles sob a perspectiva do dia final. O argumento que ele apresenta é que todos os que pecaram perecerão ou serão julgados, indiferentemente de serem judeus ou gentios, isto é, quer tenham a lei mosaica, quer não. Todos os que pecaram sem lei (gentios), sem lei também perecerão (12a). Eles não serão julgados por um padrão que não conheceram. Perecerão em virtude do seu pecado, não por ignorarem a lei. De semelhante modo, todo aquele que pecar sob a lei (os judeus), pela lei será julgado (12b). Eles também serão julgados por um padrão que conhecem. Não haverá dois pesos e duas medidas: Deus será absolutamente justo em seu julgamento.
Se pecou conhecendo a lei, ou se pecou ignorando a lei, o julgamento será de acordo com o pecado de cada um. “A base do julgamento são as suas obras; a regra do julgamento é o seu conhecimento” [19] e se eles viveram de acordo com tal conhecimento. Porque não são os que ouvem a lei que são justos ao olhos de Deus; mas os que obedecem à lei, estes são declarados justos (13). Esta é naturalmente uma afirmação teórica ou hipotética, já que nenhum ser humano chegou a cumprir totalmente a lei (cf. Romanos 3:20). Portanto não existe nenhuma possibilidade de salvação por esse caminho. Mas Paulo está escrevendo sobre o julgamento e não sobre a salvação. Ele está enfatizando que a própria lei não dava aos judeus garantida de imunidade no julgamento, como eles pensavam, pois importante não era ter a lei, mas obedecê-la.
Agora o mesmo princípio de julgamento de acordo com o conhecimento e o desempenho de cada um é aplicado, de forma mais completa, aos gentios. Dois fatos complementares a respeito dos gentios, são auto-evidentes. O primeiro é que eles não têm a lei (sc. de Moisés). Isso é afirmado duas vezes no versículo 14. Em termos de vida exterior, eles não a possuem. No íntimo, porém, têm algum conhecimento dos seus padrões – este é o segundo fato. Paulo refere-se a gentios que não têm a lei e que, no entanto, praticam naturalmente, instintivamente, o que a lei ordena (14b). O que ele está fazendo não é uma declaração universal a respeito dos gentios, mas simplesmente dizendo que às vezes alguns gentios fazem uma parte do que a lei requer. Este é um fato observável e comprovável, que os antropólogos vêem e comprovam em qualquer lugar que seja.
Nem todos os seres humanos são bandidos, vilões, ladrões, adúlteros e assassinos. Pelo contrário, existem muitos que honram seus pais, reconhecem a santidade da vida humana, são fiéis ao cônjuge, praticam a honestidade, falam a verdade e se contentam com o que possuem, tal qual se requer nos últimos seis dos dez mandamentos. Mas, então, como explicar esse fenômeno paradoxal, de que, apesar de não terem a lei, eles aparentemente a conhecem? A resposta de Paulo é que eles tornam-se lei para si mesmos, não no sentido popular (por sinal, muito errado) de que eles podem moldar a sua própria lei, mas no sentido de que o próprio fato de serem humanos se constitui em lei para eles. E por que isso? Porque Deus, ao criá-los, os fez pessoas morais e auto-conscientes; e eles demonstram, pelo seu comportamento, que as exigências da lei estão gravadas em seu corações (15a).
Assim é que, embora não possuam a lei em suas mãos, eles têm as exigências da lei em seus corações, pois Deus as colocou ali. Isso com certeza não pode ser tomado como uma referência à promessa da nova aliança de Deus, de pôr a sua lei na mente do seu povo e escrevê-la em seus corações, [20] conforme Barth, Charles Cranfield e outros comentaristas sugerem; afinal, o contexto inteiro é o de juízo, não de salvação. Paulo está se referindo, não à regeneração, mas à criação, ao fato de que “a obra da lei” (no sentido literal), as suas “exigências” (NVI), as suas “normas” (ARA), “a Lei” (BLH), suas “implicações” [21] foram escritas nos corações de todos os seres humanos pelo Criador. O fato de Deus ter gravado a sua lei em nossos corações através da criação significa que nós temos algum conhecimento dela. Quando, ao fazer de cada um de nós uma nova criatura, Ele escreve a sua lei em nosso coração, dá-nos também amor por ela e condições para obedecê-la.
Além disso, disto dão testemunho também as suas consciências (especialmente através de uma voz negativa e desaprovadora quando fazem o mal), ora acusando-os, ora defendendo-os (15b), como num julgamento no qual interagem a promotoria e a defesa. Paulo parece estar visualizando um debate no qual estão envolvidas três partes: nossos corações (onde foram escritas as exigências da lei), nossas consciências (incitando-nos e reprovando-nos) e nossos pensamentos (geralmente nos acusando, mas às vezes até nos provendo com desculpas).
Esta parte do texto termina com o versículo 16. Os versículos 14-15 parecem formar um parêntese (como está na NVI). Então o versículo 16 conclui o tema do julgamento, e a NVI indica isso ao acrescentar as palavras introdutórias Isso acontecerá. Paulo alegou que nós não podemos escapar do juízo de Deus (1-4); que este será um julgamento justo (5-11), de acordo com as nossas obras, incluindo o alvo ou orientação fundamental de nossas vidas (o que nós “buscamos”); e que ele será imparcial no que toca a judeus e gentios (12-15). Em ambos os casos, quanto maior o nosso conhecimento moral, maior será a nossa responsabilidade moral. Agora ele apresenta mais três verdades sobre o dia do juízo, “o dia da ira de Deus” (5).
A primeiro é que o juízo de Deus abrangerá as áreas ocultas de nossa vida: Deus julgará os segredos dos homens. As Escrituras nos dizem, vez após vez, que Deus conhece os nossos corações. [22] Não há, portanto, a mínima possibilidade de que a justiça seja abortada no dia final, pois todos os fatos virão a público, inclusive aqueles que no presente não são conhecidos, como, por exemplo, as nossas motivações.
A segunda verdade é que o juízo de Deus irá realizar-se mediante Jesus Cristo. Jesus disse que o Pai lhe havia confiado “todo julgamento”, [23] e ele sempre falava de si mesmo como uma figura central no dia do juízo. [24] Em Atenas, Paulo declarou que Deus tanto estabeleceu o dia como designou o juiz, [25] conforme Pedro já havia dito anteriormente a Cornélio. [26] É um grande conforto saber que o nosso juiz não será outro senão o nosso Salvador.
A terceira afirmação é que o juízo de Deus é parte integrante do evangelho. Deus julgará os segredos dos homens, escreve Paulo, mediante Jesus Cristo, conforme o declara o meu evangelho (16). Isso provavelmente significa que a boa nova da salvação brilha em todo o seu esplendor quando vista em contraste com o sombrio contexto do juízo divino. Nós barateamos o evangelho quando o retratamos apenas como algo que nos liberta da tristeza, do medo, da culpa e de outras necessidades pessoais, ao invés de apresentá-lo como uma força que nos liberta da ira vindoura. [27]
Notas:
[19] Hodge, pg. 53.
[20] Jr 31.33; cf. 2 Co. 3.3.
[21] Dunn, vol. 38A, p. 100.
[22] P. ex. 1 Sm 16.7; Sl 139.1ss.; Jr 17.10; Lc 16.15; Hb 4.12s.
[23] Jo 5.22,27.
[24] P. ex. Mt 7.21ss.; 25.31ss.
[25] At 17.31.
[26] At 10.42.
[27] 1 Ts 1.10.
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Fonte: Monergismo
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