Por Elias Silvio
“…este parecer contentou a toda a multidão…”At 6.5
Caminhando pelo livro de atos dos apóstolos chegamos ao capítulo VI. Aqui vemos os apóstolos diante de um dilema: participar da assistência social da comunidade ou dedicar-se integralmente à difusão do Evangelho.
A igreja primitiva era basicamente formada por dois grupos de judeus convertidos: helenistas (isto é, de fala grega, de fora da Palestina) e “hebreus” naturais da Palestina e que falavam aramaico. Os judeus hebreus eram maioria naquela comunidade e por isso suas viúvas recebiam maior atenção na distribuição diária de alimentos.
As tradições judaicas baseadas na lei obrigavam os líderes e parentes a se preocuparem com as viúvas, órfãos e estrangeiros. Era considerado maldito aquele que descumpria essas regras: “Maldito seja aquele que não respeitar os direitos dos estrangeiros, dos órfãos e das viúvas!” E o povo responderá: “Amém!”. Dt 27.19
A lei detalhava como proceder: “De três em três anos junte a décima parte das colheitas daquele ano e dê aos levitas, aos estrangeiros, aos órfãos e às viúvas que moram na sua cidade, para que tenham toda a comida que precisarem.” Dt 26.12. Além disso, as sobras das colheitas ficavam para as viúvas e os cunhados tinham a obrigação de casar com a viúva do irmão para que ela não ficasse desamparada (Dt 25.5).
Lamentavelmente, por várias vezes Deus advertiu Israel pela negligência no tratamento com os pobres e necessitados, entre eles viúvas, órfãos e estrangeiros. Jesus Cristo também desmascarou os fariseus quanto ao trato com as viúvas (Mt 23.14).
A igreja primitiva estava crescendo a passos largos em Jerusalém, atraindo inclusive os trabalhadores do templo (sacerdotes). Com o crescimento, apareceram também outros problemas, dentre eles a falha na assistência social das viúvas. O Evangelista Lucas, autor do livro, confirma isso em mais um dos relatórios. Veja: “Crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o número dos discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé.” At 6.7
O elevado número de viúvas tem explicação. Segundo o comentarista Craig S. Keener, os judeus queriam ser sepultados em Israel e ali deixavam suas viúvas. Eles eram incentivados pelos rabinos, os quais ensinavam que os mortos seriam ressuscitados somente em Israel. Diante disso, havia um número desproporcional de viúvas em Jerusalém, não havendo sinagogas judaicas estrangeiras suficientes para elas. Esse problema social urbano afetou também a igreja, afinal, desde o inicio, a igreja sempre fez parte da comunidade local.
A solução encontrada pelos apóstolos foi excelente. Se pensarmos em “gestão de pessoas” veremos que eles foram perfeitos.
Primeiramente eles definiram as prioridades: “Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas.” At 6:2. “…nós perseveraremos na oração e no ministério da palavra.” At 6:4. Eles sabiam que tinham a incumbência de evangelizar o mundo antigo. Foi essa a missão que receberam do Mestre.
Os apóstolos tinham a consciência que, depois de evangelizadas, as pessoas que vinham fazer parte da comunidade cristã também tinham outras necessidades, além das espirituais. Não poderiam ignorar os problemas sociais dentro de sua comunidade.
Esse é o Evangelho integral, que visa a necessidade de redenção espiritual do homem, mas também os seus anseios existenciais. O seu comportamento moral, mas também a sua estrutura emocional. Os seus conceitos religiosos, mas também seus valores familiares. A sua vida na igreja, mas também no trabalho. Sua vida na família, mas também na sociedade. Um evangelho integral visa o homem na sua integralidade e não apenas na sua espiritualidade.
A solução foi baseada no antigo testamento. Veja o que advertia a lei mosaica: “Tomai-vos homens sábios e entendidos, experimentados entre as vossas tribos, para que os ponha por chefes sobre vós.” Dt 1:13. Agora compare com a orientação deles: “Escolhei, pois, irmãos, dentre vós, sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais constituamos sobre este importante negócio.” At 6.3.
A Bíblia é uma fonte inesgotável de sabedoria. É lamentável o desprezo que a maioria dos formadores de opinião e líderes de nossa sociedade atual tem pelas Escrituras Sagradas. Nossa sociedade seria bem mais justa se atentássemos para os princípios bíblicos.
A decisão dos apóstolos agradou a multidão: “E este parecer contentou a toda a multidão, e elegeram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, e Filipe, e Prócoro, e Nicanor, e Timão, e Parmenas e Nicolau, prosélito de Antioquia.” Atos 6:5.
Percebeu um detalhe? Olhe o nome deles! Segundo os comentaristas bíblicos, todos os sete escolhidos eram judeus helenistas, ou seja, pertenciam a minoria. Quem trataria melhor aquelas viúvas do que seus próprios parentes ou conterrâneos? A solução Divina sempre é a melhor.
Nos dias de hoje a palavra minoria está em voga. O que significa? Veja um conceito simples: “minorias são grupos marginalizados dentro de uma sociedade devido aos aspectos econômicos, sociais, culturais, físicos ou religiosos.”
Como vimos, desde os primeiros dias do cristianismo, a igreja teve que lidar com os problemas sociais à sua volta, por fazer parte do contexto social. Não somos e nunca fomos uma ilha.
Infelizmente, ao longo da história nem sempre acertou em suas escolhas.
Quando precisou decidir sobre brancos dominantes ou negros pobres, acolheu brancos em detrimento dos negros, manchando sua história com segregação racial da pior espécie.
Praticamente em todos os lugares que foram colonizados por europeus cristãos, houve segregação racial: no continente africano, na Índia, com indígenas e aborígenes, etc.
A cobiça e a arrogância dessas pessoas foi maior do que o amor, fazendo com que líderes cristãos e suas igrejas se conformassem com o que estava acontecendo no mundo. Na segunda guerra mundial os judeus também sofreram com a permissividade da igreja.
Desprezaram o conselho do apóstolo Tiago: “Meus irmãos, não tenhais a fé de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor da glória, em acepção de pessoas, porque, se no vosso ajuntamento entrar algum homem com anel de ouro no dedo, com trajes preciosos, e entrar também algum pobre com sórdido traje, e atentardes para o que traz o traje precioso, e lhe disserdes: Assenta-te tu aqui num lugar de honra, e disserdes ao pobre: Tu, fica aí em pé, ou assenta-te abaixo do meu estrado, porventura não fizestes distinção entre vós mesmos, e não vos fizestes juízes de maus pensamentos?” Tg 2:1-4
É fundamental conhecermos a história da igreja para que não voltemos a cometer os mesmos erros.
Agora, vamos dar uma olhadinha na atualidade:
Apesar de ser minoria, nas últimas décadas o número de igrejas evangélicas cresceu muito, principalmente no Brasil. Segundo cálculos do IBGE, em 1980 6,6% da população era evangélica, já em 2010 passou esse número subiu para 22,2%. Um aumento bastante expressivo.
Hoje, os evangélicos estão em todos os setores da sociedade, desde a política até os esportes e o entretenimento.
Existe alguma mudança significativa por causa disso? Não podemos afirmar com certeza. Talvez os números trágicos de violência, corrupção, alcoolismo, drogas e promiscuidades na sociedade brasileira fossem bem piores, caso o crescimento evangélicos fosse ínfimo.
Mesmo aquelas igrejas que são duramente criticadas por acrescentarem elementos estranhos ao evangelho (algumas com toda razão), contribuem para o bem social, ajudando pessoas em situações ás vezes degradantes e devolvendo-lhes a dignidade e a cidadania, reposicionando-as na comunidade local. Isso é inegável.
A igreja evangélica brasileira é um grupo bem fragmentado. Dentre os evangélicos brasileiros também existem várias minorias. Dentre elas destaco os reformados. Existe muita discriminação com aqueles que aceitam a teologia calvinista e seus temas considerados indigestos, tais como predestinação, livre-arbítrio, soberania divina, entre outros.
Não é fácil ser “diferente entre os diferentes”. Gostei das palavras da Dra. Norma Braga em seu blog sobre ser “protestante reformada conservadora”: “a gente acaba se acostumando a ser espezinhado, xingado e excluído de todos os lados, tornando-se menos suscetível, mais aberto ao diálogo e às diferenças, nem que seja por pura necessidade.”
Meus queridos(as), se você é cristão (protestante, evangélico ou qualquer outro tipo de vocativo) não desista da caminhada. Mesmo com suas dificuldades leve a sua cruz. “Prossiga para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus.” Fp 3:14. Lembre-se das palavras do Mestre: “…aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo.” Mt 24:13.
Se você é reformado(a), então você crê na perseverança dos santos. Você tem certeza absoluta da sua salvação e “está certo de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.” Rm 8:38,39.
O fato de lutarmos contra a correnteza em algum momento pode nos machucar, nos afastar dos amigos ou nos transformar numa espécie de Dom Quixote de La Mancha, personagem criado por Miguel de Cervantes que vivia num mundo imaginário, no qual só ele acreditava. Ninguém ao nosso redor tem as mesmas convicções suas, ou pior, todos discordam de nós.
Apesar da solidão e das circunstâncias, repito aqui o que já disse acima: não desista da caminhada. Mesmo com suas dificuldades leve a sua cruz. “Prossiga para o alvo, a fim de ganhar o prêmio do chamado celestial de Deus em Cristo Jesus.” Fp 3:14. Lembre-se das palavras do Mestre: “…aquele que perseverar até ao fim, esse será salvo.” Mt 24:13.
Quando for desprezado, insultado ou coisa parecida, siga em frente firmado na promessa: “As minhas ovelhas ouvem a minha voz, e eu conheço-as, e elas me seguem; e dou-lhes a vida eterna, e nunca hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão. Meu Pai, que mas deu, é maior do que todos; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai.” João 10:27-29
Concluindo, o desejo do meu coração é que nós todos, independente de convicção teológica, possamos estar com Cristo um dia e participarmos das suas bodas.
Lá, finalmente, todos seremos um!!! Cantaremos no mesmo coral à uma só voz, não haverá mais sábados ou domingos, participaremos do mesmo banquete, comeremos a mesma comida e tomaremos o mesmo vinho. Será fantástico!!!
Pense nisso!!!
Até a próxima!!!
Deus o abençoe!!!
Notas
- J. Williams, David. Atos, Novo Comentário Bíblico Contemporâneo. São Paulo: Editora Vida, 1985.
- H. Gundry Robert. Panorama do Novo Testamento. São Paulo: Edições Vida Nova, 1978.
- Craig S. Keener. Comentário Bíblico Atos, Novo Testamento. São Paulo: Editora Atos, 2004.
Membro do Ministérios Justificação pela Fé, amigo fiel e apaixonado pela Teologia Reformada. Membro, líder de pequeno grupo e professor da EBD da Igreja Presbiteriana do Calvário de Sorocaba/SP.