Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero pregou as suas 95 teses sobre os abusos clericais e indulgências na porta da igreja em Wittenberg. Esse evento famoso é frequentemente considerado o ponto de partida para a Reforma Protestante.
A principal preocupação de Lutero e dos outros reformadores era a doutrina da justificação. Para usar a linguagem de Calvino, essa era a “principal dobradiça sobre a qual a religião gira”. E a doutrina da justificação não é menos importante hoje do que há 500 anos atrás.
Existem cinco conceitos-chave que todo protestante deve entender se quiser compreender a doutrina da justificação do reformador (e da Bíblia).
Primeiramente, o cristão é simul iustus et peccator. Essa é a famosa frase latina de Martinho Lutero que significa “ao mesmo tempo, justificado e um pecador”. O Catecismo nos lembra poderosamente que mesmo que sejamos justos diante de Deus, ainda violamos os seus mandamentos, sentimos a dor da consciência e lutamos contra o pecado interior. Neste lado da consumação, sempre seremos santos pecadores, justos miseráveis, e em alguns momentos até mesmo insensatos justificados. Deus não nos absolve da nossa culpa com base em nossas obras, mas porque nós confiamos “naquele que justifica o ímpio” (Romanos 4.5).
Em segundo lugar, nossa justificação diante de Deus é baseada em uma justiça de outrem.[1] Isso significa que somos justificados por causa de uma justiça que não é nossa. Eu não sou justo diante de Deus por causa da minha justiça, mas porque “a perfeita satisfação, justiça e santidade de Cristo” foi imputada a mim. “Nada em minhas mãos eu trago, simplesmente à tua cruz me apego; nu, venho a ti por vestes; incapaz, olho para ti por graça; imundo, eu vou à fonte; lave-me, Salvador, ou morro”, escreveu August Toplady em um antigo hino. Não contribuímos com nada para a nossa salvação. O nome pelo qual cada cristão deve ser chamado é “O Senhor é a nossa justiça” (Jeremias 23.6).
Em terceiro lugar, a justiça de Cristo é nossa por imputação, não por infusão. Ou seja, não somos feitos santos, nem infundidos com bondade como se a possuíssemos em nós mesmos, mas antes, a justiça de Cristo é creditada em nossa conta.
Em quarto lugar, somos justificados somente pela fé. A Igreja Católica reconheceu que o cristão era salvo pela fé; foi a parte do somente que eles não admitiram. Na verdade, o Concílio de Trento da Contra-Reforma Católica do século dezesseis declarou anátemas aqueles que criam em qualquer justificação por imputação ou justificação pela fé somente. Mas a fé evangélica sempre afirmou que “tudo o que preciso fazer é aceitar o dom de Deus com um coração crente”. Em verdade, a fé que justifica deve evidenciar-se em boas obras. Tiago 2 é todo sobre isso. Porém, essas obras servem como evidência confirmatória, não como o fundamento da nossa justificação. Somos justificados pela fé sem obras da lei (Romanos 3.28; Tito 3.5). O evangelho é “crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo” (Atos 16.30-31), não “crê no Senhor Jesus Cristo, coopere com a graça transformadora e serás salvo”. Não contribuamos em nada para a nossa salvação, senão com o nosso pecado; não trazemos mérito, senão o de Cristo; e nada necessário para a justificação, exceto a fé somente.
Finalmente, diante de toda essa consideração sobre a necessidade da fé, o Catecismo explica que a fé é apenas uma causa instrumental em nossa salvação. Em outras palavras, a fé não é o que Deus considera aceitável em nós. De fato, propriamente falando, a fé em si não justifica. A fé é apenas o instrumento pelo qual nos apossamos de Cristo, temos comunhão com ele e participamos de todos os seus benefícios. É o objeto da nossa fé que importa. Se você se arriscar em um lago congelado, não é a sua fé que o impede de cair na água. É verdade, é preciso fé para entrar no lago, mas é o objeto da sua fé, os doze centímetros de gelo, que mantém você em segurança. Acredite em Cristo com todo o seu coração, mas não ponha a sua fé na sua fé. Sua experiência de confiar em Cristo oscilará. Portanto, não se esqueça de descansar em Jesus Cristo e não em sua fé nele. Somente Jesus é aquele que morreu por nós e foi ressuscitado para nossa justificação. Creia e você também será salvo.
#1 N.T.: O termo original “alien righteousness” foi traduzido como “justiça de outrem”. A frase do original que faz alusão ao termo “alien”: “Alien doesn’t refer to an E.T. spirituality” [Alienígena não se refere a uma espiritualidade extraterrestre] foi suprimida da versão em Português.
Publicado originalmente em https://voltemosaoevangelho.com
Kevin DeYoung é o pastor principal da University Reformed Church, em East Lansing (Michigan). Obteve sua graduação pelo Hope College e seu mestrado em teologia pelo Gordon-Conwell Teological Seminary. É preletor em conferências teológicas e mantém um blog na página do ministério The Gospel Coalition.